“Quero voltar a estar mal” | A Argentina vê renascer a música de protesto

Ignacio Copani é um cantor e compositor argentino de 58 anos, autor de mais de 1.200 cançoes em mais de 30 anos de carreira. É também um artista comprometido com as causas sociais. E como grande parte da classe artística e intelectual argentina, vem sofrendo, angustiado, a realidade imposta pela política de arrocho do governo de Mauricio Macri.

Em menos de 5 meses no poder, o empresário Macri realizou a maior transferência de riqueza de que se tem notícia na história pós-ditadura, das classes mais pobres para os empresários mais ricos. Com sua caneta presidencial, legitimada por uma maioria democrática, mas suspeita por voraz e veloz, Macri isentou de impostos grandes empresários mineiros e agroexportadores, ao mesmo tempo em que desvalorizou o peso (o que fez triplicar a inflaçao dos alimentos); aumentou em até 500% as tarifas públicas de luz, gás e transporte; demitiu milhares de funcionários públicos. Sem falar do brutal endividamento do país que promoverá para pagar o acordo fechado com os fundos abutres, um punhado de especuladores financeiros, liderados por Paul Singer.

Apesar de representarem menos de 7% do universo total de credores da dívida argentina pós-moratória de 2001, Macri pagará a esses especuladores quase a metade do valor já pago aos outros 93%, durante o difícil, mas elogiado e bem sucedido processo de reestruturaçao da dívida, lançado em 2005 por Nestor Kirchner. Além disso, o governo Macri conseguiu dobrar com pressoes o até entao combativo sindicalismo argentino, exigindo negociaçoes salariais com aumentos bem abaixo do índice projetado para a inflaçao anual, fato jamais ocorrido durante a Era Kirchner. Apesar de uma inflaçao anual que rondava os 30%, até o ano passado, a Argentina ostentava o salário mínimo com maior poder de compra de toda a América Latina.

E o desastre nao é apenas econômico. Macri também destruiu importantes conquistas democráticas, como a Lei de Serviços de Comunicaçao Audiovisual, que teve vários artigos eliminados, ficando reduzida a uma lei de livre mercado. Já nao tem a prerrogativa de reestruturar a injusta concentraçao do espectro audiovisual argentino. Algumas semanas atrás, legitimado pelas modificaçoes na lei, Macri deu sinal verde para um negócio de milhoes de dólares: a compra da Nextel pelo Grupo Clarín, o imbatível king-kong local das comunicaçoes, amigo e protetor midiático do presidente.

Com sua política de transferência de recursos, Macri tem gerado pobreza. Fato constatado em um estudo da tendenciosa Universidade Católica Argentina, instituiçao que historicamente se caracterizou por apoiar e defender os setores políticos neoliberais do país. Apoiado e protegido pela valiosa cumplicidade da mídia, liderada pelo poderoso Clarín, o presidente e sua equipe se empenha todos os dias na necessária tarefa de convencer a sociedade de que o arrocho é apenas um sacrifício, passageiro e necessário, em funçao da “pesada herança” do país destruído que receberam da administração kirchnerista.

E é aqui que entra Copani, com sua arte, recuperando a música de protesto . “Quero voltar a estar mal”, lançada com sucesso no YouTube, ironiza e brinca com a “pesada herança”. Copani e muitos argentinos sabem que culpar governos passados para justificar uma política desastrosa é uma estratégia para bobos. Pode até funcionar durante alguns meses, mas nao salva nenhum presidente como Macri da inevitável reprovaçao das urnas, e muito menos da contundência da História.

Abaixo, a letra traduzida.

Quero voltar a estar mal (Ignacio Copani)

Tanta alegria seguida, um cantor me dizia,
pode te adoecer…
Eu comprovei nesses dias em que ainda
nao pude parar de festejar despedidas e de aprender a dançar
pendurado na borda e morrendo de rir
para nao chorar.

Quero voltar a estar mal…
Como sofri no passado.
Quero voltar a ter gripe com o ar-condicionado
ligado em 22 graus.
Quero voltar a escapar,
que seja uma bosta,
e o fim de semana prolongado ter que aguentá-lo
no maldito litoral.

Tanta alegria seguida, me disse uma tia,
pode te deixar tonto
e o que você achava que era bom,
poderia ser algo anormal.

Que bobo eu fui, nao sabia,
que tinha que me endividar e com toda alegria
meu neto um dia terá que pagar

Quero voltar a estar mal…
Quero herdar o pesado…
Quero voltar a engordar
e sem culpa devorar meio quilo de churrasco.
Quero a dívida saldar,
do carro que comprei.
Quero voltar a encher o porta-malas com as sacolas
do supermercado.

Tanta alegria seguida te juro que um dia
pode me matar,
o bom é que essa notícia nao vende
e você, talvez, nem vai ficar sabendo.
Nao há mais lugar para o choro,
nesta revoluçao.
Diga-me onde me mostraram um minuto de espanto
com a repressao.

Quero voltar a estar mal…
Quero voltar ao relato,
quero assistir a um canal que possa me informar
pelo menos um pouco.
Quero esse mundo irreal,
de pensadores e artistas
e nao está felicidade de valentoes, medíocres,
burros e fascistas.

Quero voltar a estar mal…
Que a alegria nao doa.
Quero este tempo nefasto de aumentar o gasto
com novas escolas.
Quero voltar a cantar…
Quero somar na orquestra…
Quero quebrar o silêncio angustiante e brutal…
desta sádica festa.”

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