Manifesto argentino contra Putin e a homofobia evidencia atraso brasileiro

Para a indústria criativa terminou a espera do que tradicionalmente sempre se espera quando o assunto é um “clássico”: a campanha pré-Copa do Mundo da Mercado McCann, agência fundada por Martín Mercado – espécie de Paulo Coelho da publicidade – para o TyC Sports, versao argentina do nosso SporTV. Uma longa história de hits marca a relaçao Mercado-TyC Sports. Quem nao se lembra daquele comercial para as Olimpíadas de Londres, em 2012, que mostrava o treinamento de um atleta argentino no inconfundível cenário das Ilhas Malvinas sob o claim: “para competir em solo inglês, treinamos em solo argentino”. Também nao dá pra esquecer ‘Jogo Bendito‘, um discurso do Papa Francisco no Rio, transformado em preleçao de incentivo sob medida para a Seleçao de Messi, dias antes do início da Copa do Mundo do Brasil. É de Martin Mercado também a ideia de um dos comerciais mais traduzidos e exportados da história da publicidade mundial, criado para a Coca-Cola, em plena crise de 2001, o baratíssimo e inesquecível ‘Para Todos‘.

Com toda essa reputaçao na bagagem, Mercado McCann, TyC Sports e suas equipes decidiram criar para a Copa um manifesto contra o presidente russo Vladimir Putin e sua declarada política de repressao aos homossexuais. Para o público em geral, era apenas mais um comercial, de uma marca relacionada ao futebol no contexto do clima copeiro que começamos a viver a partir de agora. A mistura de expectativas tao diferente resultou em reaçao e debate, Trending Topic em Twitter, discussao acalorada em vários programas do prime time televisivo argentino, poucas horas depois do lançamento do comercial.

É uma mensagem homofóbica e confusa“, disseram alguns. “Nao tem mulher no comercial“, ressaltaram outros. “Banalizaram a perseguiçao aos homossexuais que ocorre na Rússia“, vaticinaram alguns mais. O comercial da Mercado McCann é apenas um manifesto. E que em suas palavras reflete uma inegável realidade. “Senhor Putin, viemos de um lugar onde é comum ver um homem chorar por outro homem. Talvez o senhor se espante vendo um cara agachado diante de outro, mas para a gente isso é normal. Senhor Putin, se para o senhor o amor entre homens é uma doença, nós estamos muito doentes”, sao algumas das frases do comercial, uma crítica claramente irônica sobre o tratamento dado pelo governo russo ao tema da homossexualidade.

É a mais pura verdade. Na Argentina, há muito tempo, é diferente.

Poucas sao as sociedades com uma tao firme tradiçao de respeito à diversidade sexual como a argentina. Ou já esquecemos que foi a Argentina o 1º país da América Latina a reconhecer por lei o direito ao casamento civil entre pessoas do mesmo sexo? Em quantos países do mundo vigora uma lei de Identidade de Gênero, que permite que pessoas trans sejam inscritas em seus documentos pessoais com o nome e o sexo que escolheram ter? Aqui pode.

Sem ir muito longe. Em 2015 aí no Brasil, um dos comerciais que mais gerou polêmica foi da AlmapBBDO para O Boticário, filme que comemorava o Dia dos Namorados, e que mostrava, entre outras demonstraçoes de amor, um casal homossexual trocando presentes. O próprio Blue Bus contou na época que este filme tinha sido recordista de queixas no Conar, sob o argumento de que “naturalizava” as relaçoes homossexuais e incentivava comportamentos nesse sentido (!!!).

Talvez, o “pecado original” do filme de Martín Mercado esteja em suas imagens (ou na falta de algumas delas), no mais antropológico dos sentidos, do gênero como significaçao cultural, nao como característica natural ou biológica, representado neste caso por um casting com apenas machos. Ou alguém pode duvidar que o futebol também agrada mulheres-hetero ou homo-gays, bi, metro, pan…? Faça um exercício. Feche os olhos e escute o áudio. E aí? Cadê a mensagem homofóbica?

O que vai acontecer com o filme da Mercado McCann? Ainda nao sabemos. Por enquanto, conversando com anunciante e agência, apuramos que optaram pelo “no comments”, ao mesmo tempo em que retiraram o comercial do ar. Uma pena. Esperemos que no território livre da internet, este manifesto contra Putin continue circulando (e alimentando a polêmica).

Bem-vindo, debate. No que se refere à diversidade, a Argentina está muito avançada, apesar de que falta muito para que o respeito à diversidade se traduza em uma sociedade mais justa e igualitária em outros aspectos, como o econômico e social.

Enquanto esse dia nao chega, reflitamos sobre um paradoxo cultural que diz muito sobre as diferenças com os nossos “hermanos”, entre avanços e retrocessos: as imagens de uns “calientes” beijos homossexuais no final do filme de Mercado certamente enterrariam de vez a possibilidade de qualquer crítica negativa, cenas que em um comercial brasileiro, muito pelo contrário, muito provavelmente despertariam fúria e preconceito.

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