A metáfora perfeita do jogo – Luciano Martins Costa no Observatorio

Texto do Luciano Martins Costa publicado ontem no Observatorio

O Brasil amanhece na 2a feira, 30, ouvindo vagas referências a convençoes partidárias que oficializam candidaturas a presidente e a governadores de estados. Mas o som de fundo ainda é o dos locutores de futebol narrando a vitória dramática da seleçao brasileira contra o time do Chile, na partida que valeu a classificaçao para as quartas-de-final da Copa do Mundo. A classificaçao do Brasil, obtida na disputa de pênaltis após persistir o empate nos 30 minutos de prorrogaçao, vai compor o rol das grandes histórias do esporte.

Os jornais de domingo, 29, vieram recheados de análises, gráficos e opinioes abalizadas de veteranos jornalistas – e também de palpites dos neófitos da bola, que em época de grandes eventos brotam de outros ramos do conhecimento em busca de seu lugar na mídia.

Mas a descriçao daquele episódio nao cabe na linguagem comedida do jornalismo. Só mesmo a literatura poderia dar conta de produzir um relato convincente de como o pior time em campo acabou beneficiado por um movimento caprichoso que apenas um objeto esférico pode produzir.

Quando a bola chutada pelo chileno Jara partiu, girando no sentido anti-horário, seu destino era entrar no canto esquerdo do gol defendido pelo brasileiro Júlio César, que jamais a alcançaria. Mas o que se viu foi a mais perfeita representaçao do futebol. As imagens em câmera lenta mostram que a pelota bate na trave, reverte o giro que a encaminhava para dentro do gol e, fazendo um arco, cruza toda a linha mortal, saindo pela linha de fundo.

Pode-se dizer que, impulsionada pelo tiro forte e tecnicamente perfeito do atleta chileno, ela se encaminhava para onde a conduzia toda a matemática, toda a geometria, a física e a ciência dos ventos. Mas aquele sólido geométrico cuja superfície curva tem todos os pontos equidistantes de seu centro não é um objeto tridimensionalmente simétrico: quando em movimento, ele se deforma, reagindo aos impactos externos.

O capricho da bola se resume ao jogo das pressões entre sua atmosfera interior e o resto do planeta. Tudo remetia o objeto para o gol: menos o imponderável, e o imponderável é a essência do futebol.

O imponderável já havia marcado sua presença em um lance anterior, no último minuto da prorrogaçao, quando a bola chutada pelo centroavante chileno Mauricio Pinilla se chocou contra o travessao de Júlio César. Ali já se manifestava aquilo que faz do futebol uma paixao capaz de mobilizar quase todo o planeta.

Mais da metade de toda a populaçao da Terra acompanha os jogos pela televisao, e com todas as possibilidades técnicas, todo o planejamento que acompanha as equipes, o segredo do jogo segue sendo o acaso. Esse é o significado que se concentra no caprichoso movimento que produz a bola ao tocar na trave esquerda de Júlio César, fazer a elipse ao longo da linha do gol e sair pelo outro lado.

Se tivesse batido um milímetro mais para dentro, ela poderia seguir girando no sentido anti-horário e cruzar a linha fatal, acionando o sistema eletrônico de detecçao inaugurado nesta Copa. Se tivesse batido de frente, nao teria o mesmo efeito dramático do quase-gol.

O potencial para desmentir previsoes de especialistas, para contrariar a própria história e desmoralizar as planilhas é que transforma o futebol numa metáfora da própria vida. Sua essência é demonstrar que o controle é pura ilusao.

Vistas pela televisao, as jogadas precisam ser repetidas, eventualmente com a ajuda dos comentaristas, para que o espectador se convença de que o improvável substituiu a lógica, a surpresa superou o planejamento. E no dia seguinte, depois de tudo visto e revisto muitas vezes nos programas da TV, as pessoas se aglomeram diante das bancas e quiosques para olhar as primeiras páginas.

Reproduzidas na imprensa, as jogadas sao congeladas pelas palavras e pelas fotografias, e só entao aquilo que parecia inacreditável se consolida no entendimento. Essa é provavelmente a funçãao remanescente da mídia tradicional: ancorar a percepçao fugaz criada pelos meios eletrônicos.

Aí está também seu principal desafio: aceitar que, na vida real como no futebol, o desejo do jornalista pode ser contrariado por um capricho da bola.

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