O Facebook confunde segurança c/ privacidade – sobre conexao via HTTPS

especial para o Blue Bus

O Facebook anunciou ontem  uma melhoria nos protocolos de segurança – Scott Renfro, engenheiro de sistemas da companhia, explicou de forma simples como a adiçao de um “S” após o http nos endereços torna mais segura a autenticaçao e a navegaçao na rede social. O protocolo verifica tanto a autenticidade do servidor (Facebook) quanto do cliente (computador do usuário). Tecnicamente, o site nao deixará visíveis na rede os cookies de autenticaçao do usuário e nao permitirá que sites maliciosos obtenham os seus dados de autenticaçao, e por consequência, acessem a sua conta.

Introduzido há 2 anos pelo Facebook, o protocolo extra de segurança era de uso opcional. Até entao, 35% dos usuários já utilizavam a camada extra de proteçao. Isso também ajudará os usuários a navegar em aplicaçoes de terceiros ligadas ao Facebook sem que os sites parceiros saibam os dados da sua conta. Claro que essas iniciativas de segurança sao louváveis. Mas elas nao tocam no cerne das críticas feitas ao modo como o Facebook gerencia os dados dos usuários do site: eles sao entregues a outras empresas e ao governo dos EUA.

Resumindo, Zuckerberg confunde segurança com privacidade. A principal reclamaçao dos usuários – e que fez os mais radicais deletarem suas contas e procurarem outras redes sociais alternativas –  nao é a falta de segurança. Quando os usuários pedem mais segurança na rede estao clamando por privacidade. A história nao é sobre Edward Snowden ter revelado que o governo dos EUA espia os usuários do mundo inteiro. É sobre o fim da Internet livre como pontua John Naughton, colunista do Guardian.

PRISM

Gostamos de personalizar as histórias, por isso nos perguntamos se Snowden é herói ou vilao. Mas por uma incorrigível ignorância, poucos jornalistas nos demos conta de quao grande é a história por trás de Snowden. Sempre pensamos a Internet como um espaço onde todos poderiam postar suas opinioes de forma livre, sem as amarras das grandes corporaçoes de mídia e entretenimento. No entanto, cada vez mais, a Internet foi sendo dominada por outros competidores: os provedores de acesso e as empresas de telecomunicaçoes e infraestrutura.

Nesse cenário, a ideia da Internet como uma grande rede global virou passado. Uma possibilidade no horizonte é uma Internet “balcanizada”, com países tendo jurisdiçoes sobre sua parcela na rede (lembremos que China e Irã controlam o acesso de seus cidadaos à rede mundial de computadores). Cada vez mais haverá disputa pela regulamentaçao da Internet. Por conta do abuso de poder norte-americano, outros países tentarao tirar dos EUA o controle da infraestrutura da Internet e a gerência da ICANN (entidade reguladora dos domínios e sites da web).

Mesmo quem quiser fugir das redes sociais e “terceirizar”  o armazenamento dos seus dados para a computaçao em nuvem nao tem garantia alguma de privacidade. Apple, Amazon, Google e Microsoft estao entre as 9 empresas norte-americanas acusadas de colaborar com a empreitada de vigilância do governo dos EUA. Quem aqui gostaria de pensar que seus dados empresariais podem estar sendo bisbilhotados por outras empresas e pelo governo?

Conforme explica o ciberteórico bielorrusso Evgeny Morozov, a justificativa para a vigilância norte-americana sobre a Internet era a prevençao de um novo “11 de setembro”. Mas duas bombas feitas com panelas de pressao explodidas na maratona de Boston mostram que a explicaçao dada para espionar a nós todos é injustificada. Nao há justificativa moral para a espionagem dos dados armazenados na Internet.

Por conta da revelaçao da espionagem da National Security Agency (NSA) descobrimos que “computaçao em nuvem” é apenas uma expressao para designar algum servidor no interior de Utah ou Idaho. Também tivemos que engolir todas as piadas sobre aqueles que duvidavam da existência do “Big Brother” e queriam construir infraestrutura de comunicaçao e softwares independentes das empresas norte-americanas. Por que deveríamos entregar nossas redes de comunicaçao a outros países?

Consumo de dados

Muitos achavam que a ameaça eram Estados totalitários, mas vemos que somos ameaçados por algo muito pior: um sistema privatizado e terceirizado de coleta de dados. É o lado negro da consumerizaçao. Na verdade, o produto vendido na Internet nao está nos sites de compra. Somos nós, nossos dados, gostos e preferências. O mais irônico é que os fornecedores dessas informaçoes fomos nós mesmos, embalados pela ideia de uma grande rede eletrônica para conectar todos os povos.

Política, tecnologia e informaçao estao cada vez mais entrelaçados. Essa junçao derrubou outro mito: o de que a política “virtual” seguiria regras diferentes da política tradicional. Em seu livro Cypherpunks, o jornalista australiano Julian Assange afirma que “a nova alavanca da geopolítica mundial consiste nos dados privados de milhoes de cidadaos mundo afora”. Ou seja, ainda vale a regra de que quem controla a estrutura controla o mundo. Só trocamos átomos por bits.

E quem vai pagar a conta da espionagem norte-americana? Os dissidentes de governos autoritários como Rússia, China e Irã. Para esses ativistas, era mais apropriado fazer seus protestos no Facebook do que em versoes regionais desses sites. Certamente esses governos vao explorar o ódio contra as empresas de tecnologia norte-americanas e encorajar os seus cidadaos a usarem redes sociais locais  – mais propícias à censura e ataques governamentais.

As empresas de tecnologia nos ofereceram serviços gratuitos em troca de explorar nossos dados (assim surgiu o Gmail e surgiram os anúncios relacionados ao conteúdo de nossas mensagens). Elas concordaram em ceder os dados dos usuários para o governo dos EUA por um motivo muito simples: elas temem açoes judiciais movidas pelo governo e também regulaçoes federais mais duras contra seus serviços.

Alternativas possiveis

Nao há leis que possam nos proteger contra o uso dos nossos dados por empresas como Google, Amazon, Microsoft e afins. Por um motivo: nós voluntariamente escolhemos usar os serviços gratuitamente oferecidos por essas empresas. O único meio de lutar contra isso é fazer uma crítica a todo esse sistema baseado na publicidade em cima dos dados do usuário.

Para Assange, a soluçao contra a vigilância está no desenvolvimento de novas tecnologias de criptografia, independentes das soluçoes criadas pelas empresas norte-americanas. A intençao do movimento cypherpunk, como salienta Assange, era a de proteger os usuários contra a vigilância do Estado, mas a tecnologia também pode ser usada para manter a autonomia de outros Estados ou, nas palavras de Assange, combater a “tirania do império contra a colônia”.

O paralelo entre a distopia prevista por Orwell no livro 1984 e a vigilância realizada pelo governo dos EUA é grande: a Internet, uma ferramenta da emancipaçao humana, está sendo transformada no mais perigoso facilitador do totalitarismo, sublinha Assange. A ideia do fluxo de informaçoes é degradada pelas origens físicas da Internet.

Fazendo uma analogia com a estratégia de Mahatma Gandhi, Assange diz que a criptografia é a última forma de açao direta nao-violenta. Ainda que um Estado impusesse uma violência física sem limites, seria incapaz de descriptografar os dados e ter acesso às informaçoes. Com isso, seria possível aos cidadaos manter segredos e escapar da vigilância dos Estados. Pelo visto, nao há muito tempo para evitar essa catástrofe.

Charles Nisz é jornalista e professor da ECA/USP. Mestre em Comunicaçao pela USP, acompanha as relaçoes entre jornalismo e tecnologia.

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