A piada sem graça do metrô lotado | por Luciano Martins Costa

Texto do Luciano Martins Costa para o Observatório da Imprensa sobre o anúncio do Metrô na Rádio Transamérica – viu ontem no Blue Bus?

O acontecimento foi produzido em tom de blague e poderia ser arquivado no anedotário nacional, entre as muitas bobagens destes tempos em que tudo tem que se transformar em espetáculo. No entanto, acaba se configurando como mais uma demonstraçao de falta de sensibilidade de comunicadores e autoridades, num episódio típico do contexto cultural em que vivemos, no qual certos protagonistas da mídia acham que tudo pode ser transformado em piada.

O episódio de que tratamos nasceu de uma tentativa da Companhia do Metrô de Sao Paulo de melhorar sua imagem pública, desgastada pela sequência de panes e incidentes, pela superlotaçao dos trens na maior parte da rede e soterrada pelas denúncias de um esquema de corrupçao que dura quase duas décadas. Sobre esse monte de entulho, a direçao do Metrô achou por bem patrocinar uma série de anúncios para convencer o usuário de que vagoes lotados sao uma condiçao natural desse sistema de transporte em todas as metrópoles.

O plano era inserir o texto produzido pela agência de propaganda em programas populares de rádio, colocando locutores e comentaristas para reforçar a mensagem – modelo que os publicitários chamam de testemunhal.

O problema aconteceu quando entrou em cena o personagem conhecido como Gaviao, que atua na Rádio Transamérica com intervençoes supostamente cômicas durante um programa de esportes. Ao se referir às ocasioes em que ocorre excesso de passageiros, o suposto comediante afirmou – “Pra falar a verdade, até gosto do trem lotado, é bom pra xavecar a mulherada, né, mano?”

O comentário poderia cair no vazio de sua própria bizarrice machista, nao fosse o contexto social a que se refere – desde janeiro, o Metrô de Sao Paulo já registrou pelo menos 23 incidentes de abuso sexual em seus vagoes lotados, com alguns casos graves de ataques contra mulheres.

Existem sites na internet que estimulam a prática, como uma competiçao entre tarados, e as autoridades nao têm ideia do número total de ocorrências, porque a grande maioria das vítimas tem vergonha de prestar queixa e sabe que seria impossível identificar os autores da violência.

Voltamos, entao, ao patético senso de humor e de oportunidade do comunicador que se faz chamar de Gaviao e, por extensao, da direçao da emissora e dos responsáveis pela estratégia de comunicaçao do Metrô.

A emissora divulgou nota dizendo que “toda propaganda que a rádio veicula é aprovada pelo contratante”. A Companhia do Metrô informa que “a produçao desse infeliz comercial” é de inteira responsabilidade da Rádio Transamérica. Segundo a empresa, a encomenda era para “mostrar a modernidade do Metrô de Sao Paulo” e explicar que a lotaçao nos horários de pico “acontece em todas as grandes cidades do mundo”.

Acontece que nao há como dizer para as mulheres que sao assediadas, tocadas e agarradas por sujeitos desequilibrados que isso é modernidade, que no mundo inteiro os metrôs sao lotados pela manhã e no começo da noite, e tudo bem.

Nao há redator de publicidade capaz de transformar em mensagem positiva o fato de o sistema de transporte urbano sobre trilhos ter se tornado um pesadelo para os usuários mais vulneráveis. Nao há criatividade capaz de encobrir o fato de que as linhas sao precárias e insuficientes porque, durante muitos anos, a corrupçao desviou boa parte da verba que deveria ser usada para expandir e melhorar o sistema.

Na 4a feira (26/3) em que os principais jornais do país abrem espaço para a desastrada campanha publicitária do metrô paulistano, a imprensa noticia que o Ministério Público denunciou à Justiça 30 executivos de 12 empresas acusadas de fraudar licitaçoes para a compra e manutençao de equipamentos do sistema de transporte sobre trilhos em Sao Paulo. O pacote de denúncias se refere ao período de 1998 a 2008 e, como se tornou praxe nesse escândalo, aponta apenas os supostos corruptores.

Os jornais nao parecem estranhar o fato de que alguém pagou propinas milionárias, mas curiosamente ninguém apareceu para receber o dinheiro. Nesse contexto, uma campanha tentando convencer o cidadao de que metrô é assim mesmo em todo mundo, com ou sem piadas de gosto duvidoso, equivale a chamar o usuário de estúpido.

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