O zumbido q acompanha o vôo da mosca | A ética no jornalismo segundo Gabo

Por Luciano Martins Costa na ediçao 794 do Observatorio da Imprensa – texto no original

A morte de Gabriel García Márquez surpreendeu a imprensa de todo o mundo na 5a feira, 17, embora boatos tenham anunciado que ele esperava junto de sua família o desfecho da doença que o acometia. Gabo já nao tinha vigor para outro combate com o câncer, que em 1999 havia interrompido um de seus projetos mais instigantes.

Na 6a feira, 18, os jornais fazem longos obituários, ressaltando sua obra literária, na qual se destaca Cem Anos de Solidao, o estonteante romance que é tido como a metáfora perfeita dos rincoes mais profundos da América Latina. Os comentários repetem à exaustao as referências a ele como fundador do estilo literário que ficou conhecido como “realismo mágico”, expressao que ele nao reconhecia como definidora de sua obra. Aquilo que para os outros parecia magia era o modo como ele enxergava a realidade.

Os privilegiados que puderam observá-lo de perto sabem que ele vivia em um estado que excedia os parâmetros comumente aceitos como definidores daquilo que existe. Realidade e imaginaçao se completavam. No convívio mais próximo, impressionava o modo como saltava rapidamente de um tema complexo para possibilidades radicais, num encadeamento de palavras que mesclavam reflexoes profundas com brincadeiras pueris e provocaçoes.

Foi assim com os 10 jornalistas que convidou para aquele projeto, em 1997, que ele intitulou Jornalismo ideal. Era o tempo de consolidaçao das tecnologias de informaçao e comunicaçao que viriam a revolucionar o modo como o ser humano se comunica e se informa, e ele se juntou ao grupo para liderar o desenvolvimento de uma visao de futuro para o jornalismo.

Este observador era um dos participantes.

Durante meses, cada um em sua cidade, e posteriormente em Cartagena de Índias, na Colômbia, e depois em San Miguel de Allende, no México, o grupo se dedicou a imaginar como poderia ser uma imprensa capaz de se aventurar no território ilimitado da internet, abrindo-se para a sociedade e compartilhando com o público o poder de definir o que é relevante entre os fatos de cada dia.

O projeto foi concluído no final de 1998 e deveria ser levado a redaçoes e escolas de jornalismo pelo mundo afora, com uma série de recomendaçoes e propostas que tinham como objetivo provocar uma ruptura no modo como é feita a interpretaçao e mediaçao dos acontecimentos pela imprensa. A doença surpreendeu a todos, mas aquelas reflexoes permaneceram no currículo da Fundaçao para o Novo Jornalismo Iberoamericano, idealizado por Gabriel García Márquez e dirigido pelo intelectual Jaime Abello Banfi.

No fundo, o propósito era romper alguns processos tradicionais do trabalho jornalístico, abrindo a possibilidade de compartilhamento das escolhas com o leitor. Cabia ao designer Roger Black elaborar os meios pelos quais haveriam de conviver textos e imagens, de modo que uma nova arquitetura estimulasse a transformaçao constante do conteúdo pela experiência de cada leitor.

Gabo era o paradigma: sua presença e suas intervençoes apontavam para o horizonte sem limites da imaginaçao. Era um homem fascinante, um manancial de ideias cuja matriz parecia vir de um profundo sentimento de solidariedade, o mesmo que o fez se aproximar dos protagonistas de algumas das utopias do seu tempo.

Costumava dizer que o jornalismo deveria perseguir a realidade, e apostava que sempre haveria leitores interessados em acompanhar uma história, desde que fosse contada com talento. Nesse sentido, ele achava que jornalismo e literatura tinham que se mesclar em algum ponto.

Seu Relato de um Náufrago, primorosa reportagem que resgatou, meses depois de ocorrido, o testemunho do único sobrevivente de um desastre no mar do Caribe, é um modelo dessa possibilidade literária do jornalismo.

No entanto, para Gabriel García Márquez, antes da técnica vinha a ética. Ele nos ensinou que essa deve ser a razao de ser da atividade jornalística: uma ética profunda, capaz de justificar a intromissao de alguém na vida do outro. Ele dizia isso com uma metáfora simples e clara: “A ética nao é uma condiçao ocasional, mas deve acompanhar sempre o jornalismo, como o zumbido acompanha o voo da mosca”.

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