A jaqueta colorida de Nicolás Maduro e a midia | por Luciano Martins Costa

Comentário do Luciano Martins Costa para o programa radiofônico do Observatório, hoje.

Os jornais desta 5a feira, 20 noticiam com grande destaque a morte da jovem Génesis Carmona, de 22 anos, durante conflitos de rua na Venezuela. Ela foi atingida durante troca de tiros entre grupos de motociclistas que se enfrentavam na cidade de Valência.

A cobertura da imprensa brasileira dá ênfase ao clima de beligerância que se estabeleceu entre partidários do governo de Nicolás Maduro e seguidores do empresário Leopoldo López, atual líder da oposiçao. O noticiário acentua a percepçao de que o país está irremediavelmente rachado ao meio, com a populaçao mais pobre engajada majoritariamente no regime inaugurado por Hugo Chávez, enquanto a classe média e os mais ricos se alinham com as forças oposicionistas. O pano de fundo é uma crise econômica que prejudica o abastecimento de produtos industrializados, agravada pela percepçao de que faltam recursos ao governo para romper o círculo vicioso criado pela extrema dependência do petróleo.

Há 10 anos, quando Chávez governava, era visível nas cidades venezuelanas um clima de entusiasmo, com grandes obras de infraestrutura, como a nova ponte sobre o rio Orinoco, novas rodovias e muitas escolas e mercados comunitários. Nas regioes de fronteira com a Colômbia, era possível visitar ambiciosos projetos de urbanizaçao de antigas aldeias e a construçao de redes para fornecimento de água encanada e tratamento de esgotos.

O modelo bolivariano previa a entrega da gestao desses serviços a membros das próprias comunidades. Em todos esses lugares era possível observar a grande profusao de jornais regionais, muitos dos quais se dedicavam cotidianamente a criticar o governo. Os textos chamavam atençao pelo uso constante de adjetivos, e havia um diário em Maracaibo que chamava o presidente Chávez de “cachorro” em suas manchetes. Todos circulavam livremente e eram vendidos ou distribuídos gratuitamente nas ruas.

Passada uma década, há indícios de que a nova classe média, composta por muitas famílias que foram beneficiadas pela política econômica baseada no intenso protagonismo do Estado, virou a casaca. Sem o carisma de Chávez e acumulando erros estratégicos, Nicolás Maduro corre o risco de perder o apoio daqueles que mais sofrem com a falta de produtos básicos e com a inflaçao.

A situaçao na Venezuela tende a se agravar, se nao houver uma intervençao de organismos multilaterais, e espera-se que o Brasil cumpra um papel relevante nesse processo. No entanto, como a mídia tradicional resiste a reconhecer que políticas de Estado possam dar melhores resultados que a liberdade dos mercados, o histórico recente do jornalismo nao autoriza a expectativa de que esses fatos venham a ser narrados com a mínima objetividade.

Um exemplo de objetividade é o documento vazado pelo Wikileaks em 2009, no qual se lê que o governo dos EUA considerava pouco confiável o agora líder da oposiçao venezuelana, Leopoldo López, tido como “arrogante, vingativo e sedento por poder”. Essa informaçao, presente em textos de agências internacionais, foi citada pelo Estado de S Paulo e pelo portal G1, do grupo Globo, em notas curtas, mas a tendência geral do noticiário é a de condenar liminarmente o governo, embora o movimento de López seja efetivamente uma tentativa de golpe.

É esperado que, nas sociedades que passam por intensa mobilidade social, parte dos cidadaos beneficiados pela ascensao se torne mais conservadora, pelo simples fato de que, em sua nova condiçao, adquirem uma percepçao maior do risco de perdas. Quem vive da mao para a boca se vê obrigado a enfrentar condiçoes mais adversas; quem já conta com o básico e passa a ambicionar mais bem-estar tende a privilegiar a estabilidade e o conforto.

Essa é uma característica das classes médias. Essa é também uma condiçao presente nos países latino-americanos que passaram nos últimos anos pelo fenômeno da mobilidade social produzida pela intervençao do Estado na economia.

O ganho de bem-estar proporcionado por políticas de geraçao de renda entre os mais pobres tem sido registrado por pesquisadores independentes desde 2006. Mas essas conquistas raramente ganham destaque na imprensa do continente.

A figura populista e ruidosa de Nicolás Maduro, com sua jaqueta colorida, certamente se choca com o que se espera de um estadista, mas há muito mais a ser dito sobre a crise na Venezuela do que os jornais estao dispostos a publicar.

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