O jornalismo tradicional está descendo a ladeira, com uma câmera no capacete

Por Luciano Martins Costa no Observatorio da Imprensa

O ex-piloto de Fórmula 1 Michael Schumacher nao é o herói que a imprensa pintou na última semana. Ele se encontra hospitalizado em estado grave, após sofrer um acidente na estância de esqui de Méribel, nos Alpes Franceses, porque resolveu sair da pista regular e descer por uma área não delimitada, acabando por cair e bater a cabeça em uma pedra.

Nos últimos dias, os jornais e os noticiários do rádio e da televisao repetiram seguidamente que o ex-campeao de automobilismo se acidentou ao tentar socorrer a filha de um amigo, que teria sofrido uma queda. Ontem, os jornais brasileiros reproduziram informaçoes de autoridades francesas que investigam o acidente e contam outra versao, com base nas imagens gravadas por uma câmera acoplada ao capacete de Schumaker: ele saiu da pista oficial porque quis, e nao há registro de nenhuma outra pessoa na área onde se acidentou.

A história mentirosa foi passada aos jornalistas pela assessora de imprensa do ex-piloto, Sabine Kehm, e comprada pelo valor de face por agências internacionais de informaçoes, emissoras de televisao, jornais e revistas de todo o mundo.

O episódio coloca duas questoes interessantes para a análise da mídia. A primeira é a preocupante ascendência de assessores de comunicaçao sobre a imprensa. A segunda é ainda mais instigante e se refere ao processo avassalador de espetacularizaçao das notícias: no universo hipermediado, a disputa por imagens e dados cada vez mais chocantes produz um contexto no qual a verdade perde espaço para as versoes mais eletrizantes.

Nesse caso, qual seria o valor real da informaçao mediada pela imprensa?

Com a reduçao do tempo para processamento das informaçoes, somada à necessidade de decidir rapidamente sobre o que é e o que nao é notícia, a mídia se coloca num campo tao inseguro quanto o local escolhido por Schumacher para deslizar em cima de um par de pranchas.

Na disputa pela primazia de “furar” a concorrência, os editores optam por divulgar como verdadeiro tudo de interessante que lhes chega às maos. No caso da história supostamente inventada pela assessoria do ex-piloto de corrida, nao havia muito como checar a veracidade da informaçao, uma vez que Schumacher segue em estado de coma e os repórteres postados em frente ao hospital têm que ser criativos para cumprir suas cotas de relatos diariamente.

Segundo reportagem distribuída pela Associated Press, especialistas afirmam que muitos atletas profissionais e amadores, com câmeras acopladas em seus equipamentos, tendem a priorizar as imagens de seu próprio desempenho, em detrimento da segurança.

Michael Schumacher nao é um herói da compaixao e da solidariedade: é um esportista extremamente egoísta e competitivo, viciado em adrenalina, que depois de se aposentar no automobilismo seguiu arriscando a vida em esportes radicais. A câmera em seu capacete foi provavelmente uma das causas de seu acidente.

Nao há como ignorar que o episódio revela mais uma vez a fragilidade do sistema da imprensa. Se é possível enganar praticamente toda a mídia do mundo com uma história que seria desmentida com a revelaçao das imagens gravadas pelo próprio Schumacher, o que nao devem estar fazendo as poderosas agências de relaçoes públicas, muitas das quais sao associadas a grupos de publicidade, para moldar na opiniao do público a reputaçao de empresas, celebridades, investidores, políticos e bancos?

Aqui no Brasil, onde as redaçoes encolhem e diminui progressivamente a capacidade do sistema da mídia de captar e processar notícias, a maioria dos veículos depende cada vez mais das pautas criadas por assessores de comunicaçao. No caso do noticiário político, por exemplo, nao há como acreditar em critérios objetivos da imprensa ao processar os produtos dos marqueteiros, uma vez que as disputas eleitorais invadiram o cotidiano do jornalismo e se transformaram em pauta permanente. A mesma coisa se pode afirmar do noticiário econômico, claramente atrelado aos interesses político-partidários e condicionado pelos dogmas do mercado.

A imprensa é refém de suas fontes, em parte porque nao tem mais capacidade, com seu sistema vertical e linear de processamento, de captar e dar um significado à complexidade da vida contemporânea; em parte, porque também aderiu ao espetáculo midiático, no qual o jornalismo se mistura a todo tipo de interesse particular ou setorial.

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