O questionamento da confiança na imprensa – Carlos Castilho no Observatorio

por Carlos Castilho no Observatorio da Imprensa link original

Durante décadas a confiança do público na imprensa era uma questao acima de qualquer suspeita, mas desde a virada do século a quase unanimidade está desaparecendo rapidamente. Nao se trata de uma discussao estatística sobre oscilaçoes dos índices de confiança no noticiário, mas de verificar em que medida mudou o contexto que envolve o que é publicado ou transmitido.

A questao a ser vista nao é se a cobertura de eventos como o da morte do cinegrafista Santiago Andrade está sendo isenta ou enviesada, mas de analisar a conjuntura em que o trabalho da imprensa vem sendo desenvolvido. O foco é menos uma preocupaçao com erros ou acertos e mais com a constataçao de que os mesmos problemas que estamos sentindo em matéria de desorientaçao informativa, no caso do cinegrafista da TV Bandeirantes, tendem a se repetir sempre que um evento provocar comoçao pública.

A identificaçao de manipulaçoes do noticiário é essencial, mas as investigaçoes da morte de Santiago ainda estao carregadas de muita emoçao, o que aconselha mais cuidado e equilíbrio na hora de apontar os responsáveis e as consequências possíveis. O que, sim, já pode ser analisado é que cada fato, número ou evento noticiado pela imprensa contempla inevitavelmente várias versoes – até porque o ditado popular garante: “Em cada cabeça, uma sentença”.

Na era da abundância noticiosa, onde cada versao pode se tornar viral na internet, nao é mais possível falar de um único enfoque ou abordagem. A dúvida e incerteza passam a ser as sensaçoes mais comuns em que assiste a telejornais, lê revistas, jornais e paginas Web. A maioria das pessoas nao gosta de conviver com a dúvida e incerteza porque isso as obriga a pensar e admitir que os outros podem ter mais razao.

A imprensa alimentou durante décadas essa confortável posiçao de milhoes de leitores e telespectadores ao prometer-lhes só a verdade e apenas a verdade. Era uma questao de princípio e também uma necessidade comercial, porque as pessoas pagam pela verdade, mas dificilmente fazem o mesmo pela dúvida.

Acontece que hoje é impossível oferecer a certeza absoluta. Nao há como se prometer algo que nao existe. O máximo que a imprensa pode oferecer sao versoes, que inevitavelmente são parciais, na reconstrução do que aconteceu. Se há um equívoco na postura da imprensa, este é o de induzir o público a acreditar que existe algo inquestionável quando o mais adequado seria assumir a relatividade de todos os depoimentos, fotografias e vídeos.

No caso da morte de Santiago Andrade, a única coisa certa é que ele pagou com a vida o preço de ser um profissional que nao fugiu dos desafios de seu trabalho. Mas com relaçao às investigaçoes, em especial a indicaçao de autoria, as empresas jornalísticas transmitem ao público a ideia de que tudo vai ser resolvido rapidamente quando de fato estao atropelando a dúvida e a incerteza.

A morte de mais um jornalista nao está sendo aproveitada para discutirmos mais profundamente as causas e consequências das manifestaçoes de rua que se espalharam de forma viral pelas cidades grandes e médias do país. A cobertura da imprensa está toda focada na apresentaçao de 1 ou mais culpados, num processo cirúrgico cuja preocupaçao é minimizar toda e qualquer controvérsia e apontar responsáveis exclusivos, num cenário onde o componente político eleitoral nao pode ser desprezado.

A imprensa está perdendo uma oportunidade fundamental para transformar a morte de Santiago em algo realmente histórico. Em vez de empenhar-se na pressa por puniçoes pouco convincentes e decidisse jogar o que lhe resta de confiança junto ao público para mostrar-lhe como conviver com a dúvida, com a controvérsia e com a incerteza, porque elas sao a marca dos tempos que começamos a viver.

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