O jornal queria 1 mea culpa, mas Cristina Kirchner bateu o pé (do correspondente)

Em um invejável exercício – e liçao – de democracia, a presidente argentina Cristina Kirchner abriu ontem o ano legislativo do país com o tradicional discurso de 1º de março no Congresso Nacional, lotado de deputados e senadores – inclusive os da oposiçao – militantes, avós e maes da Praça de Maio, autoridades e ministros e em cadeia nacional de rádio e TV.

Em um artigo publicado na véspera em O Globo, José Casado antecipava aos seus leitores o que ocorreria ontem em Buenos Aires. Sob o título A rendiçao de Cristina Kirchner, Casado descrevia o costumeiro e apocalíptico cenário de eterna crise da Argentina e pedia – estilo entrelinhas – um mea culpa presidencial. Apostou que Cristina nao o faria e acertou em cheio. A aposta boba de Casado, se fosse ganha, transformaria o evento num fato histórico :) um presidente, diante do seu povo, admitindo erros, pedindo desculpas, quiça renunciando antecipadamente ao mandato entregue pela maioria democrática ;) Casado é mesmo um bobo. Isso nunca aconteceu em lugar nenhum, e duvido que aconteça. O governo de Cristina cometeu erros, como qualquer governo, mas nao era necessário reconhecê-los, como pedia Casado em O Globo. Neste caso, os acertos absolveram – com vantagem – tropeços e decisoes equivocadas de um governo que, como nao é Deus, pode falhar.

Cristina estava de branco e bem humorada – foto. Enumerou todas e cada uma das medidas que desde 2003, sob o comando do marido falecido, atormentam nao só O Globo, mas também os responsáveis pela quase morte do país em 2001 – o capital financeiro internacional, os bancos, os reacionários, os privatistas, os liberais, a mídia, os milicos torturadores, os que defendem um Estado frouxo, o FMI, enfim, todos os que, junto com o marido, ela ousou enfrentar – com muita coragem e democraticamente, e com uma audácia nunca vista antes na dolorosa história de glórias e penas desse país.

Casado nao antecipou no seu artigo, mas Cristina tinha nas maos a prova de que um mea culpa nao seria necessário. Em vez de pedir perdao pelos erros cometidos, Cristina citou o Banco Mundial e seu recente elogio ao país no esforço bem sucedido de reduçao da pobreza e da desigualdade social. Falou também sobre os parabéns recebidos da FAO por sua política heterodoxa de controle de preços, que em vez de decretar congelamentos compulsivos – e eternamente fracassados – convocou a populaçao para ajudar a controlar o abuso da remarcaçao descarada dos preços, por meio de um programa batizado de Preços Cuidados. Cristina também lembrou que a Argentina tem o maior salário mínimo e o de maior poder aquisitivo da regiao.

“O que nao nos perdoam é termos realizado a mais importante reestruturaçao de dívida da história do país”, disse Cristina, quase como se estivesse se dirigindo a Casado.

O ponto forte do discurso, que tanto incomoda Casado – e a grande mídia internacional – foi quando Cristina falou sobre a “tentativa de golpe suave na Venezuela” – “Nao defendo o governo da Venezuela, nao defendo o presidente Nicolás Maduro. Defendo o sistema democrático de um país, como fizemos quando aconteceu o que aconteceu na Bolivia, no Equador e como faremos em cada país da regiao, sejam de esquerda, de direita, do meio ou do fundo. A democracia nao é de direita nem de esquerda, a democracia é respeito pela vontade do povo”.

Aplausos gerais, menos da oposiçao – das 3, uma: cinismo histórico, invejosa soberba ou burrice antológica.

Sábado de Carnaval, véspera da entrega dos prêmios Oscar e a Argentina dando mais uma liçao de democracia, como nao puderam antecipar – ou nao era conveniente mesmo – O Globo e José Casado.

publicidade

publicidade